Coisas que oiço, coisas que vejo mas não acredito...
Ideias e comentários para
estatudoperdido@gmail.com
Casa de Fados?!
Haviam algumas coisas boas antes do 25 de Abril, a revista e o fado.
As pessoas iam com gosto às casas de Fados, vivia-se uma certa boémia controlada de perto. O teatro era um tear onde se entrelaçavam diferentes matizes e se arrematava a censura para longe.
Depois veio o vinte-cinco-do-quatro e a coisa mudou muito. O teatro perdeu-se no amarelo das revistas, e o fado nas casas foi-se perdendo no amarelo nicotina dos dedos dos marialvas e nas vozes roucas que já não ecoam nas vielas.
O pretexto era um jantar de amigos. Um amigo dos bons, dos que não diz mal do primeiro-ministro, nem do Benfica, pois está a viver o sonho americano em tons tropicais.
O local levantou logo suspeita, o Dragão de Alfama. Pensei logo que fosse um restaurante chinês de fados. A ementa fixa denunciava-o ainda mais: Crepe de Pastel de Bacalhau, Família de Cabrito Feliz, e Pêra Rocha Fá-Si, mas era tudo fruto da minha imaginação.
Chegados ao local, naquela Lisboa de outras eras, dos cinco reis das esperas e das toiradas reais, nem vê-la. A das festas, das seculares procissões dos populares pregões matinais, esses já não voltam mais e ainda bem. Num prédio escuro, ladeado por outros em recuperação estava sedeado o restaurante, marcado a custo pelo telefone, através de um certo dançar de português sóbrio ante um português borracho. Cedo ficamos a saber a ementa fixa. Nada de extraordinário a apontar, tirando o vinho. O suor de Baco, perdão, a fina-flor vinhateira tinha o nome de Juanica.
Pobre senhora esta. Que mal terá feito para ser imortalizada nesta zurrapa dos deuses. Encontra-se vinagre mais doce nas mercearias.
Mas nem todo o mal encerrava na Juanica.
O modelo de jantar, com intervalo entre os fados, dava uma margem de manobra muito curta aos convivas. Estes esforçavam-se em falar entre os silêncios obrigados, vi dois amigos a escreverem notas nos guardanapos entre cada lufada fadista. O destino estava traçado. Não se podia falar entre as músicas.
O problema não residia nas músicas, mas sim nos auto-proclamados fadistas. Um dos fadistas podia passar bem por estafeta numa agência funerária, daquelas que dá a notícia do falecimento por anagramas; um outro, rufia, carteirista no eléctrico 28, teria chumbado no concurso de sósias de Jerónimo de Sousa. Para ambos o caminho do fado foi o mais difícil. Ainda hoje esperam tornar-se fadistas.
As vozes femininas, se é que as houve, arrastavam-se à velocidade das obras do metro na linha vermelha. Presumo que a inspiração lhes venha do ácido inalado dos produtos que usam para lavar as escadas, na sua labuta diária.
Mas pior que a ausência de fados, eram as regras. O silêncio opressivo do ‘chiu!’ da arquibancada sempre que se levantava a voz, o negrume que envolvia as vozes ronfas, e a obrigatoriedade de permanecer até ao fim do espectáculo. Mais do que um prémio esta sentença mais parecia um castigo da escola primária. Olhávamos para todo o lado à procura da menina dos olhos.
Quando nos quisermos esgueirar pela porta, aproveitando um dos curtos minutos entre cada vendaval fadista, estamos agrilhoados à falta do café. Não podíamos pagar sem ter bebido o café e nem podíamos pedir o café porque as senhoras estavam a cantar e o café não podia ser tirado porque a máquina a trabalhar fazia barulho e todos nós queríamos silêncio. Enfim o fado é que educa, o fado é que instrui, o fado é que nos dá cabo da paciência.
A noite aproximava-se lentamente do fim, o cemitério de lombo de porco e arroz de presunto descansava sobre a mesa e faziam-lhe companhia as imaculadas garrafas de Juanica. Tão castas como a inocência da empregada que cumpria sincopadamente todas as ordens da sogra e dona do estaminé fadista.
Na minha vida fui uma única vez a uma casa de fados e esta visita ao Dragão de Alfama não entrou nessa contabilidade.